terça-feira, 28 de junho de 2011

José Saramago

 
Texto em três Partes


Parte 1

O texto que apresento na segunda parte foi escrito quando Saramago morreu. No mês de Junho. No ano passado. É, pois, um texto antigo que agora reciclo. Porém, quando o escrevi, o meu objectivo não era homenagear Saramago, porque não aprecio coisas pomposas, e as homenagens são pomposas (espero que concordem), mas tão somente para me despedir, pois é de bom tom despedirmo-nos daqueles que partem.

Parte 2

O texto propriamente dito:

José Saramago: ponto final, parágrafo!



Peço desculpa, meu querido José Saramago, pelo excesso de pontuação que coloquei no título. E não, não pertenço ao grupo dos que acham que o senhor não sabia pontuar. Como se a Literatura fosse um manual de gramática! Pobres tolos! A Literatura é transgressão e o senhor era/é um transgressor!

A primeira obra que li de sua autoria foi "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Li-o às pressas - imagine, se aquilo é livro para ler desta maneira - porque queria estar minimamente informada, quando estivesse na palestra com a sua presença. Gostei do livro, claro! E gostei de o ouvir. Depois de muitas perguntas - ofendidas - quanto à temática e ao porquê de ter assim retratado Jesus, o senhor respondia, não sei se com impertinência: « Escrevi assim porque Deus quis.» Muito me ri, na dita palestra, com o seu sentido de humor. E recebi um autógrafo seu. Obrigada!

Não concluí a leitura de "O Memorial do Convento", porque o meu pai estava doente - "doença prolongada" - e não suportei o olhar de Blimunda, a observar o mais recôndito de cada um. Não queria, através do olhar dela, ver o que se passava no interior do meu pai. Li "A Caverna", "A Jangada de Pedra", "O Ensaio sobre a Lucidez" e "Todos os Nomes". O excelente "Todos os Nomes", o meu preferido! Li-o como uma história arquétipa daqueles que são solitários. É uma história cheia de algum som e alguma fúria, significando nada...

Os afazeres não me permitiram ler as suas últimas obras, bem mais curtas, mas não perdem pela demora.

Milan Kundera, em "A Arte do Romance", diz coisas extraordinárias. Evoca Husserl que falou sobre "o esquecimento do ser". Num mundo em que a Ciência se ergue toda poderosa, não há espaço para o ser, para o humano. O ser humano coisifica-se, é um instrumento do e no mundo tecnológico, científico. Onde podemos encontrar, então, o Homem? Cito:

«O romance acompanha o homem constante e fielmente desde o começo dos tempos Modernos. A "paixão de conhecer" apoderou-se então dele [do romance] para que prescrute a vida concreta do homem e a proteja contra o "esquecimento do ser" ». (1)

Ou seja, é no romance que o Homem vive, que o seu espaço de vida é iluminado. O romance situa o Homem no seu mundo, explica-lhe o mundo, dá-lhe pistas. No romance não há, porém, verdades absolutas, nem respostas. É um espaço de problematização, de incertezas, de hipóteses. E é neste contexto que a morte de José Saramago é perda grande e fundamental. Porque a sua obra, polémica, tentou desmistificar dogmas e apontar caminhos. Tentou confrontar-nos com a nossa cegueira e dar-nos um vislumbre de lucidez. Em suma, foi/é um espaço onde o Homem vive. Foi/é um contributo contra o "esquecimento do ser".



Parte 3

Passado um ano sobre a morte do escritor, o texto anterior não pretende exprimir saudade, que é um sentimento muito português (ao que consta) e muito banal, mas tão somente para dar testemunho de lembrança. É, pois, uma forma de demonstrar que não há como esquecer um romancista. E, a terminar, volto a Kundera, para o citar:

«Descobrir aquilo que só um romance pode descobrir, é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance.» (2)

Repito: “O conhecimento é a única moral do romance”. Conhecimento: eis um critério a utilizar quando se procura um romance. E os romances de Saramago cumprem este critério? Eu acho que sim (espero que concordem).

Fim do texto.(ponto final)


(1) Kundera, Milan, A Arte do Romance, 2ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, p.16


(2) Ob. cit. p. 18


Adélia Rocha




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